segunda-feira, agosto 12, 2013

‘Gerações’- Capítulo 27

Filipe Torres (Geração 2012)

Pedalava a ritmo forte e consistente. Sentia a chuva a escorrer pela cara, a entrar pela roupa, a molhá-lo até aos ossos. E ainda assim, continuava. Pedalava, pedalava, pedalava. Apreciava o bater da chuva, satisfeito por ver a sua força-de-vontade triunfar uma vez mais. Tinha uma irritante vozinha na cabeça, felizmente fraca, que constantemente o incitava a fugir às tarefas a que se obrigava. Essa vozinha, da preguiça e do desencaminhamento, não o comandava. No entanto, falava frequentemente; e de cada vez que se superiorizava a essa voz, Filipe sentia-se realizado; ainda para mais quando essa voz tinha bons argumentos: Não vás, que está a chover! Podes ficar doente... Podes perder o controlo da bicicleta, podes derrapar, podes mais isto e mais aquilo, blá-blá-blá, e por essa altura já a voz falava sozinha e Filipe se punha em cima da bicicleta, preparando-se para sair e fazer frente à chuva.

O espírito e a força de Filipe Torres não se curvavam perante (quase) nada. Um factor, apenas um, podia alguma vez alterar as suas convicções e abalar a força das suas decisões: o conselho do irmão - Fernando Torres. Filipe respeitava-o mais que ninguém, amava-o mais que ninguém, e tinha-o em mais alta conta do que a qualquer outra pessoa no mundo. Fernando fora sempre o seu apoio, a sua companhia, o lutador que tudo lhe conseguira dar. Fernando fora, enquanto adolescente, um adulto à força. Filipe nunca conhecera o pai, que morrera quando não tinha ainda um ano de idade. E tinham Filipe onze e Fernando dezasseis anos, quando perderam a mãe num acidente de automóvel. A dor fora infinita, o desespero sufocante, a força abalada. Sem tios e com os avós mortos há muito, os Torres eram então um par de órfãos de uma família constantemente devastada por mortes prematuras. Sem família que os acolhesse, Fernando assumiu o papel de patriarca da família. Começou então, aos dezasseis, a trabalhar  para si e para o irmão. Sempre deu a Filipe tudo o que necessitou. Comida, roupa, casa, transporte, estabilidade… Pagara-lhe a escola e pagava-lhe a universidade, pedindo apenas brio em troca de todo o trabalho e investimento. A vida de Fernando, cedo perdida, era dedicada a construir a de Filipe. E o peso dessa responsabilidade, o peso de orgulhar quem investiu toda a sua juventude em dar-lhe tudo, dava a Filipe Torres toda a força e toda a garra para perseguir cada objectivo com o máximo empenho.

Para alegria do irmão mais velho, Filipe era um jovem de sucesso. Mesmo sendo o melhor aluno do curso, cultivava a sua inteligência; mesmo sendo culto, cultivava a sua cultura; mesmo sendo forte e vigoroso, cultivava o seu físico; mesmo sendo popular, cultivava a sua vida social. Naquele preciso momento pedalava em direcção ao Hospital, para visitar a melhor amiga da namorada. Cristina, que estava em estado crítico, tinha sido atropelada 4 dias antes, e Luísa ainda não voltara a visitá-la desde o dia do atropelamento. Por isso, Filipe decidiu visitá-la no lugar da namorada, que estava demasiado frágil para ver Cristina em mau estado. Pouco tempo esteve no Hospital. Cristina estava inconsciente e não reagia às suas palavras. Quando saiu, deixou um ramo de flores que entregou em nome de Luísa. De seguida, voltou a pegar na bicicleta e seguiu até casa da namorada. Luísa vivia sozinha, num apartamento arrendado. Luísa frequentava a Universidade na cidade, mas era de fora. Ao contrário de Filipe, era nascida em berço de ouro. Nada lhe faltara alguma vez, e daí vinham o mimo e a imaturidade que tanto atraíam Filipe. Luísa e Filipe eram opostos, que à boa maneira do electromagnetismo mais simples, se haviam atraído. Luísa tinha em Filipe a força, a estabilidade e a excelência que lhe faltavam. Filipe tinha em Luísa a inocência, a felicidade e a infantilidade de que fora privado. Filipe era, por esta altura, um rapaz feliz com a sua relação. A única preocupação que guardava era o conselho do seu irmão. Fernando não simpatizava particularmente com Luísa; mais que lhe ver virtudes, via-a como um ser fútil e inútil. Por respeito, no entanto, não o verbalizava frequentemente, dando a Filipe o espaço necessário para se sentir confortável na sua relação.

Chegou a casa de Luísa tão ensopado que a embirrenta namorada lhe barrou a entrada naqueles conformes. No corredor do prédio o despiu até o reduzir à sua roupa interior, no corredor o secou, no corredor o convidou finalmente a entrar com um ar desafiador. Provocado pelas cenas do corredor e pela nudez a que fora obrigado, apalpou atrevidamente a nádega de Luísa ao entrar-lhe em casa; como resposta, recebeu um pronto açoite no braço. Quando olhou a namorada nos olhos, não viu o olhar maroto que esperava, mas uma expressão carregada e séria – quiçá zangada. «Que se passa?», questionou. «A sério que cá vens, mais molhado que um pito, me obrigas a compor-te para te deixar entrar, nem sozinho te secas, e quando me entras finalmente em casa apalpas-me como se nada fosse?». «Mas…» hesitou, confuso. «Que mas?», pressionou Luísa. Não vale a pena insistir quando está com este humor… «Nada, esquece». «Não queres falar, não falas. Vais-te sentar ou também precisas que te sente?». A pergunta de Luísa, manifestamente retórica, deixou Filipe ainda mais confuso; embora mal-humorada, Luísa não costumava ser tão assertiva ou agressiva. «Tu estás bem?», decidiu perguntar. «Pareço-te bem?», perguntou Luísa. «Não…» «Então tens aí a tua resposta, para que perguntas?» «Porque me preocupo contigo… Que se passa?». E, desta vez, Luísa respondeu sem rodeios. «Em que mundo vives tu? No meu mundo, a minha melhor amiga foi atropelada mesmo à frente do meu nariz, mesmo debaixo das minhas barbas, comigo a assistir, impotente». Entre lágrimas, prosseguiu. «No meu mundo, essa pessoa está em estado crítico e não há nada que eu possa fazer para a salvar… Nada, Filipe. Nada! E tu vens para aqui reconfortar-me com ordinarices quando devias ouvir-me, e abraçar-me em silêncio, aconchegar-me e afagar-me, dar-me o apoio que eu preciso e do qual pareces totalmente alheado». Filipe aproximou-se, e, como quem pede desculpa, tentou abraçá-la calmamente como pedido. «Escusas, é tarde demais…». E, num movimento rápido e ágil, trancou-se no quarto, onde passou o que restava do dia. Filipe encostou-se à sua porta e várias vezes se tentou desculpar. Nenhuma resposta vinha do interior do quarto, e o único som que lhe chegava do interior era o som do choro e dos passos inquietos de Luísa. Assim passaram também o crepúsculo e a noite. Filipe adormeceu ali, de cabeça encostada no rebordo da porta e de costas e pescoço torcidos contra a madeira dura. Desconfortável, sonhou com Cristina e sonhou com Luísa. Todos os sonhos eram memórias. Reviu o dia do atropelamento e reviu a recente alteração de humor da namorada. Luísa não andava estranha só desde o atropelamento… Sonho a sonho, o inconsciente de Filipe trouxe-lhe à memória uma e outra ocasião em que Luísa andara fora de si. Que se passará afinal? Os sonhos misturavam-se com pensamentos e raciocínios numa correria cerebral que ficaria sem conclusão, tal a brusquidão do despertar.

Acordou com um grito estridente e prolongado. Outro se seguiu, ainda mais longo e desesperado, e depois veio o choro interminável. Luísa chorou e chorou, e todas as perguntas desesperadas de Filipe ficaram sem resposta. As lágrimas ameaçaram também os olhos de Filipe, tal o desespero e a ânsia em que se encontrava. Que se passaria do outro lado da porta!? Nos poucos minutos que se passaram, Filipe esperou e desesperou. Mas, finalmente, Luísa abriu a porta. Quando o fez, vinha com uma expressão de puro pânico. Apavorado, não falou. Olhou a namorada assustada com uma cara preocupada e inquisitiva. No entanto, nada na impressionante expressão de Luísa se alterava. Os olhos, num cavado negro, olhavam-no como quem o trespassava. Algo se passara, naquela manhã. Teria Cristina morrido!? Depois de muito esforço, ultrapassou o nó que lhe prendia a garganta e perguntou relutantemente: «Que se passou?».  Com o rosto paralisado e os olhos fixos em Filipe, Luísa levantou roboticamente o braço direito. Só então Filipe o viu. No braço erguido de Luísa, cruamente anunciando a morte de todos os sonhos e planos que devia aos seus esforços e aos do irmão, Filipe viu o teste de gravidez.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Reitero que não serão aceites comentários sem assinatura.