quarta-feira, agosto 14, 2013

‘Gerações’- Capítulo 28

Carlos Lopes (Geração 1969)

No seguimento dos capítulos 17, 19 e 21.

Na noite anterior anunciaram que sairia da prisão pela manhã. Não sabia se devia confiar; não sabia quão distorcida poderia aquela afirmação ser. A bem dizer, não lhe disseram como sairia da prisão ou para onde iria. No mais optimista recanto do seu ser, sonhava com a liberdade e a brisa fresca de uma manhã no exterior. Já via a porta abrir-se e o cheiro da liberdade a invadir-lhe os sentidos. Mas por fim acordou e continuava na cela, escura. Ainda não é de manhã, pensou. E voltou a encostar a cabeça à parede dura em que se apoiava todas as noites para dormir. Sabia apenas o que lhe haviam dito. Na manhã seguinte, sairia daquela cadeia. Agora sentia a costas em madeira dura, e sonhava do interior de um caixão. Já via a porta abrir-se e a intensidade da luz a queimar-lhe os olhos violentamente. Desta vez, no entanto, via a porta do interior de um caixão aberto. Sabia-se morto, no sonho, mas sabia também que estava a sonhar. Nada daquilo poderia ser realidade… Então forçou-se a acordar, e voltou à cela escura, que agora parecia menos má, em comparação com o caixão… Durante largos minutos tentou não voltar a adormecer. Mas a resiliência falhou depois de fatigada pelo escuro. Alguém lhe abriu a cela, lhe deu uma mala e com ele caminhou. Percorria um longo corredor, tão escuro e tão húmido como a sua própria cela. Passava por muitas e muitas portas que, sabia, escondiam as crueldades da PIDE como as que tinha inocentemente sofrido às mãos do agente Pedro Rossas. Finalmente, chegou ao fundo do corredor. Finalmente, via a porta a abrir-se e a adrenalina a correr-lhe por artérias e veias. Caminhou em direcção à porta, pôs um pé no exterior e inspirou o ar fresco e seco enquanto sentia o sol na pele. Com um pontapé nas costelas, voltou a acordar. «Levanta-te», disse Pedro Rossas. Rapidamente se levantou. «Segue-me». E lá o seguiu. Seguiu-o até uma sala onde os seus pertences haviam sido guardados durante toda a sua estadia na cadeia. Nenhuma palavra foi trocada entre Pedro e Carlos. Em silêncio vestiu as suas roupas, sujas e já bolorentas, sem qualquer tipo de protesto. O coração batia-lhe forte no peito. É agora… Pegou nas suas coisas e seguiu novamente Pedro Rossas. Curto foi o caminho até à porta. Desta vez, não estava a sonhar. A porta era diferente da que imaginara nos sonhos. Esta era real… Aproximou-se dela e tocou-a, com um sorriso quase a surgir-lhe na expressão. Foi então que Pedro Rossas o olhou e sorriu também. «Onde pensas que vais, menino?». Viu a maldade nos olhos de Pedro, e o terror trespassou-o do mais alto cabelo ao mais baixo calo do pé. «Penso que vou… que vou… sair desta prisão?». «Oh sim, sem dúvida! Mas para onde pensas que vais?», perguntou Rossas, divertido. Outra vez não… por favor! Carlos tremia da cabeça aos pés. Cada músculo dançava à sua própria vontade, de tal forma que não se conseguiu segurar. Caiu aos pés do agente da PIDE e chorou, sem tabus. Não aguento mais um dia que seja neste sítio… Por favor, não! Não quero voltar à tortura… Quero ir para casa… «Para casa…», sussurrou. «Quero ir para casa… Por favor!». Então Pedro levantou-o, empurrando-lhe o ombro contra a parede com a sola dura da bota. «Pois queres, queres… Todos querem, não é? Não há ninguém que se orgulhe de me ter passado pelas mãos e não tenha desejado voltar para casa. Poucos deles voltaram para casa, realmente.» Voltou a sorrir, como que divertido. Baixou-se então para falar-lhe ao ouvido. «E nenhum, vê se me ouves bem, NENHUM odiei tanto como te odeio a ti, porco. A nenhum desejei tanto ver aqui fechado para sempre. NENHUM!». Tirou o pé do ombro de Carlos e deixou-o cair novamente no chão. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e molharam mais ainda o chão duro e imundo em que se estendia. «Sorte a tua que não sou eu que mando…», e recomeçou a andar. Carlos tardou a percebeu o que Pedro dissera. Não é ele que manda… Será que vou ser libertado?… Vou ser libertado? Vou ser libertado! E levantou-se, com dificuldade, ainda tremendo, e limpou a água dos olhos. Vou ser libertado… Voltar a ver a Carla, voltar a dar aulas de música, voltar a viver, vou voltar! Vou voltar! O êxtase invadiu-o. As lágrimas quase voltaram. Desta vez, no entanto, ficaram adiadas. Por esta altura, a única coisa em que se conseguia concentrar era no seu andar. Um passo, outro passo, segura-te, segura-te, não tremas!, outro passo, outro passo… E não caiu. A certa altura, Pedro Rossas desapareceu e foi outro PIDE que o conduziu até à porta. Esta sim, esta sim!, a porta.

Foi esse mesmo PIDE que lhe disse que alguém tinha sido contactado para o vir buscar. No entanto, não sabia quem. Quando viu a porta abrir-se finalmente, desejou que fosse Carla Rossas a esperá-lo do outro lado. Nada viu durante largos segundos. A luz do exterior era forte e radiante. Passara demasiado tempo fechado na escuridão para conseguir apreciar à primeira vista o regresso do Sol à sua vida. No entanto, lá se adaptou. Foi então que viu a rede metálica que delimitava o exterior da cadeia, e seguiu a pé, lentamente, até à única saída que vislumbrava no meio daquela enorme teia de arame electrizado. Aí teve que passar por novo check point de PIDEs e só então o deixaram sair da prisão. Viu um carro à sua espera, embora não soubesse a quem pertencia. Pouco demorou a perceber. Era a sua chefe! Bela como sempre, saiu do carro e seguiu em passo firme na sua direcção. Carlos nunca pensou ficar tão feliz por ver Cindy. Abriu os braços esperando um longo abraço sentido da sua colega e patroa da Escola de Música. De braços abertos e sorriso erguido seguiu na direcção de Cindy, e de braços abertos foi fortemente esbofeteado. Uma e outra vez, três no total. Quando Cindy tirou os óculos de sol, viu a fúria que os seus olhos traziam.

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