domingo, julho 24, 2016

Diz que sou médico

Desde os meus primeiros dias nos anos clínicos que me interrogo como será acabar o curso. Como será ser médico. Como será chegar ao fim do curso e saber todas aquelas coisas sobre todas aquelas especialidades. Como será possível! E como será. Como será sentir-se médico.

Agora sei. Sei o que não sei e sei o que não sinto. Sei que sou médico no papel e que tenho um futuro nas mãos que poderá ser em frente à mesa cirúrgica ou à frente do doente, ou mesmo à frente da secretária ou do microscópio. Ou à frente do cadáver, ou à frente daquele tacho de óleo daquele restaurante pouco higiénico. Ou pode ser atrás da linha de um campo de futebol, ou à frente de um computador, que regista o que digo a um microfone. Sei que o futuro pode ser muita coisa, mas não faço ideia o quê.

O futuro é incerto. Cada vez mais o é, eu sei, mas é mais que isso. Mais que o risco de não ter formação, mais que o risco de emigrar, mais que o risco de não poder fazer o que quero, é mais que isso tudo. É não saber o que vai ser, e não saber bem o que quero que seja. Acho bonito quando alguém diz que ama o que faz. Gostava de sentir o mesmo um dia. Mas nada neste mundo é perfeito, e se sinto que fui formado para ser competente e expedito, não sinto que tenha sido ensinado a gostar de ser médico.

Hoje, não acho que vá ter saudades de estudar ou de fazer exames. Não acho tampouco que sentirei saudades de fazer histórias clínicas ou assistir a consultas infindáveis. Não acho que vá ter saudades de estar sentado em aulas sobre nada ou de andar atrás de alguém, a ouvir sem falar, a ser uma sombra ou menos que isso. Não me imagino a ter saudades de quase nada. Muito oiço por estes dias que “faria tudo outra vez”, ou que “dava tudo para voltar atrás”. Talvez um dia, no futuro, pense assim, mas hoje não. Hoje, anseio o futuro. Porque no árduo caminho que não se percorre sozinho houve muitas barreiras quebradas e muitas pequenas vitórias. Entre o suor e a frustração, criaram-se laços e alianças, e venceram-se muitas batalhas. Agora, esta guerra acabou. Não mais travaremos estas batalhas. Outras virão, algumas delas bem próximas, e algumas delas ainda mais duras que as que já travamos. Mas já estava na hora. Seis anos são muitos anos, e o futuro espera por nós.

quarta-feira, agosto 14, 2013

‘Gerações’- Capítulo 28

Carlos Lopes (Geração 1969)

No seguimento dos capítulos 17, 19 e 21.

Na noite anterior anunciaram que sairia da prisão pela manhã. Não sabia se devia confiar; não sabia quão distorcida poderia aquela afirmação ser. A bem dizer, não lhe disseram como sairia da prisão ou para onde iria. No mais optimista recanto do seu ser, sonhava com a liberdade e a brisa fresca de uma manhã no exterior. Já via a porta abrir-se e o cheiro da liberdade a invadir-lhe os sentidos. Mas por fim acordou e continuava na cela, escura. Ainda não é de manhã, pensou. E voltou a encostar a cabeça à parede dura em que se apoiava todas as noites para dormir. Sabia apenas o que lhe haviam dito. Na manhã seguinte, sairia daquela cadeia. Agora sentia a costas em madeira dura, e sonhava do interior de um caixão. Já via a porta abrir-se e a intensidade da luz a queimar-lhe os olhos violentamente. Desta vez, no entanto, via a porta do interior de um caixão aberto. Sabia-se morto, no sonho, mas sabia também que estava a sonhar. Nada daquilo poderia ser realidade… Então forçou-se a acordar, e voltou à cela escura, que agora parecia menos má, em comparação com o caixão… Durante largos minutos tentou não voltar a adormecer. Mas a resiliência falhou depois de fatigada pelo escuro. Alguém lhe abriu a cela, lhe deu uma mala e com ele caminhou. Percorria um longo corredor, tão escuro e tão húmido como a sua própria cela. Passava por muitas e muitas portas que, sabia, escondiam as crueldades da PIDE como as que tinha inocentemente sofrido às mãos do agente Pedro Rossas. Finalmente, chegou ao fundo do corredor. Finalmente, via a porta a abrir-se e a adrenalina a correr-lhe por artérias e veias. Caminhou em direcção à porta, pôs um pé no exterior e inspirou o ar fresco e seco enquanto sentia o sol na pele. Com um pontapé nas costelas, voltou a acordar. «Levanta-te», disse Pedro Rossas. Rapidamente se levantou. «Segue-me». E lá o seguiu. Seguiu-o até uma sala onde os seus pertences haviam sido guardados durante toda a sua estadia na cadeia. Nenhuma palavra foi trocada entre Pedro e Carlos. Em silêncio vestiu as suas roupas, sujas e já bolorentas, sem qualquer tipo de protesto. O coração batia-lhe forte no peito. É agora… Pegou nas suas coisas e seguiu novamente Pedro Rossas. Curto foi o caminho até à porta. Desta vez, não estava a sonhar. A porta era diferente da que imaginara nos sonhos. Esta era real… Aproximou-se dela e tocou-a, com um sorriso quase a surgir-lhe na expressão. Foi então que Pedro Rossas o olhou e sorriu também. «Onde pensas que vais, menino?». Viu a maldade nos olhos de Pedro, e o terror trespassou-o do mais alto cabelo ao mais baixo calo do pé. «Penso que vou… que vou… sair desta prisão?». «Oh sim, sem dúvida! Mas para onde pensas que vais?», perguntou Rossas, divertido. Outra vez não… por favor! Carlos tremia da cabeça aos pés. Cada músculo dançava à sua própria vontade, de tal forma que não se conseguiu segurar. Caiu aos pés do agente da PIDE e chorou, sem tabus. Não aguento mais um dia que seja neste sítio… Por favor, não! Não quero voltar à tortura… Quero ir para casa… «Para casa…», sussurrou. «Quero ir para casa… Por favor!». Então Pedro levantou-o, empurrando-lhe o ombro contra a parede com a sola dura da bota. «Pois queres, queres… Todos querem, não é? Não há ninguém que se orgulhe de me ter passado pelas mãos e não tenha desejado voltar para casa. Poucos deles voltaram para casa, realmente.» Voltou a sorrir, como que divertido. Baixou-se então para falar-lhe ao ouvido. «E nenhum, vê se me ouves bem, NENHUM odiei tanto como te odeio a ti, porco. A nenhum desejei tanto ver aqui fechado para sempre. NENHUM!». Tirou o pé do ombro de Carlos e deixou-o cair novamente no chão. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e molharam mais ainda o chão duro e imundo em que se estendia. «Sorte a tua que não sou eu que mando…», e recomeçou a andar. Carlos tardou a percebeu o que Pedro dissera. Não é ele que manda… Será que vou ser libertado?… Vou ser libertado? Vou ser libertado! E levantou-se, com dificuldade, ainda tremendo, e limpou a água dos olhos. Vou ser libertado… Voltar a ver a Carla, voltar a dar aulas de música, voltar a viver, vou voltar! Vou voltar! O êxtase invadiu-o. As lágrimas quase voltaram. Desta vez, no entanto, ficaram adiadas. Por esta altura, a única coisa em que se conseguia concentrar era no seu andar. Um passo, outro passo, segura-te, segura-te, não tremas!, outro passo, outro passo… E não caiu. A certa altura, Pedro Rossas desapareceu e foi outro PIDE que o conduziu até à porta. Esta sim, esta sim!, a porta.

Foi esse mesmo PIDE que lhe disse que alguém tinha sido contactado para o vir buscar. No entanto, não sabia quem. Quando viu a porta abrir-se finalmente, desejou que fosse Carla Rossas a esperá-lo do outro lado. Nada viu durante largos segundos. A luz do exterior era forte e radiante. Passara demasiado tempo fechado na escuridão para conseguir apreciar à primeira vista o regresso do Sol à sua vida. No entanto, lá se adaptou. Foi então que viu a rede metálica que delimitava o exterior da cadeia, e seguiu a pé, lentamente, até à única saída que vislumbrava no meio daquela enorme teia de arame electrizado. Aí teve que passar por novo check point de PIDEs e só então o deixaram sair da prisão. Viu um carro à sua espera, embora não soubesse a quem pertencia. Pouco demorou a perceber. Era a sua chefe! Bela como sempre, saiu do carro e seguiu em passo firme na sua direcção. Carlos nunca pensou ficar tão feliz por ver Cindy. Abriu os braços esperando um longo abraço sentido da sua colega e patroa da Escola de Música. De braços abertos e sorriso erguido seguiu na direcção de Cindy, e de braços abertos foi fortemente esbofeteado. Uma e outra vez, três no total. Quando Cindy tirou os óculos de sol, viu a fúria que os seus olhos traziam.

segunda-feira, agosto 12, 2013

‘Gerações’- Capítulo 27

Filipe Torres (Geração 2012)

Pedalava a ritmo forte e consistente. Sentia a chuva a escorrer pela cara, a entrar pela roupa, a molhá-lo até aos ossos. E ainda assim, continuava. Pedalava, pedalava, pedalava. Apreciava o bater da chuva, satisfeito por ver a sua força-de-vontade triunfar uma vez mais. Tinha uma irritante vozinha na cabeça, felizmente fraca, que constantemente o incitava a fugir às tarefas a que se obrigava. Essa vozinha, da preguiça e do desencaminhamento, não o comandava. No entanto, falava frequentemente; e de cada vez que se superiorizava a essa voz, Filipe sentia-se realizado; ainda para mais quando essa voz tinha bons argumentos: Não vás, que está a chover! Podes ficar doente... Podes perder o controlo da bicicleta, podes derrapar, podes mais isto e mais aquilo, blá-blá-blá, e por essa altura já a voz falava sozinha e Filipe se punha em cima da bicicleta, preparando-se para sair e fazer frente à chuva.

O espírito e a força de Filipe Torres não se curvavam perante (quase) nada. Um factor, apenas um, podia alguma vez alterar as suas convicções e abalar a força das suas decisões: o conselho do irmão - Fernando Torres. Filipe respeitava-o mais que ninguém, amava-o mais que ninguém, e tinha-o em mais alta conta do que a qualquer outra pessoa no mundo. Fernando fora sempre o seu apoio, a sua companhia, o lutador que tudo lhe conseguira dar. Fernando fora, enquanto adolescente, um adulto à força. Filipe nunca conhecera o pai, que morrera quando não tinha ainda um ano de idade. E tinham Filipe onze e Fernando dezasseis anos, quando perderam a mãe num acidente de automóvel. A dor fora infinita, o desespero sufocante, a força abalada. Sem tios e com os avós mortos há muito, os Torres eram então um par de órfãos de uma família constantemente devastada por mortes prematuras. Sem família que os acolhesse, Fernando assumiu o papel de patriarca da família. Começou então, aos dezasseis, a trabalhar  para si e para o irmão. Sempre deu a Filipe tudo o que necessitou. Comida, roupa, casa, transporte, estabilidade… Pagara-lhe a escola e pagava-lhe a universidade, pedindo apenas brio em troca de todo o trabalho e investimento. A vida de Fernando, cedo perdida, era dedicada a construir a de Filipe. E o peso dessa responsabilidade, o peso de orgulhar quem investiu toda a sua juventude em dar-lhe tudo, dava a Filipe Torres toda a força e toda a garra para perseguir cada objectivo com o máximo empenho.

Para alegria do irmão mais velho, Filipe era um jovem de sucesso. Mesmo sendo o melhor aluno do curso, cultivava a sua inteligência; mesmo sendo culto, cultivava a sua cultura; mesmo sendo forte e vigoroso, cultivava o seu físico; mesmo sendo popular, cultivava a sua vida social. Naquele preciso momento pedalava em direcção ao Hospital, para visitar a melhor amiga da namorada. Cristina, que estava em estado crítico, tinha sido atropelada 4 dias antes, e Luísa ainda não voltara a visitá-la desde o dia do atropelamento. Por isso, Filipe decidiu visitá-la no lugar da namorada, que estava demasiado frágil para ver Cristina em mau estado. Pouco tempo esteve no Hospital. Cristina estava inconsciente e não reagia às suas palavras. Quando saiu, deixou um ramo de flores que entregou em nome de Luísa. De seguida, voltou a pegar na bicicleta e seguiu até casa da namorada. Luísa vivia sozinha, num apartamento arrendado. Luísa frequentava a Universidade na cidade, mas era de fora. Ao contrário de Filipe, era nascida em berço de ouro. Nada lhe faltara alguma vez, e daí vinham o mimo e a imaturidade que tanto atraíam Filipe. Luísa e Filipe eram opostos, que à boa maneira do electromagnetismo mais simples, se haviam atraído. Luísa tinha em Filipe a força, a estabilidade e a excelência que lhe faltavam. Filipe tinha em Luísa a inocência, a felicidade e a infantilidade de que fora privado. Filipe era, por esta altura, um rapaz feliz com a sua relação. A única preocupação que guardava era o conselho do seu irmão. Fernando não simpatizava particularmente com Luísa; mais que lhe ver virtudes, via-a como um ser fútil e inútil. Por respeito, no entanto, não o verbalizava frequentemente, dando a Filipe o espaço necessário para se sentir confortável na sua relação.

Chegou a casa de Luísa tão ensopado que a embirrenta namorada lhe barrou a entrada naqueles conformes. No corredor do prédio o despiu até o reduzir à sua roupa interior, no corredor o secou, no corredor o convidou finalmente a entrar com um ar desafiador. Provocado pelas cenas do corredor e pela nudez a que fora obrigado, apalpou atrevidamente a nádega de Luísa ao entrar-lhe em casa; como resposta, recebeu um pronto açoite no braço. Quando olhou a namorada nos olhos, não viu o olhar maroto que esperava, mas uma expressão carregada e séria – quiçá zangada. «Que se passa?», questionou. «A sério que cá vens, mais molhado que um pito, me obrigas a compor-te para te deixar entrar, nem sozinho te secas, e quando me entras finalmente em casa apalpas-me como se nada fosse?». «Mas…» hesitou, confuso. «Que mas?», pressionou Luísa. Não vale a pena insistir quando está com este humor… «Nada, esquece». «Não queres falar, não falas. Vais-te sentar ou também precisas que te sente?». A pergunta de Luísa, manifestamente retórica, deixou Filipe ainda mais confuso; embora mal-humorada, Luísa não costumava ser tão assertiva ou agressiva. «Tu estás bem?», decidiu perguntar. «Pareço-te bem?», perguntou Luísa. «Não…» «Então tens aí a tua resposta, para que perguntas?» «Porque me preocupo contigo… Que se passa?». E, desta vez, Luísa respondeu sem rodeios. «Em que mundo vives tu? No meu mundo, a minha melhor amiga foi atropelada mesmo à frente do meu nariz, mesmo debaixo das minhas barbas, comigo a assistir, impotente». Entre lágrimas, prosseguiu. «No meu mundo, essa pessoa está em estado crítico e não há nada que eu possa fazer para a salvar… Nada, Filipe. Nada! E tu vens para aqui reconfortar-me com ordinarices quando devias ouvir-me, e abraçar-me em silêncio, aconchegar-me e afagar-me, dar-me o apoio que eu preciso e do qual pareces totalmente alheado». Filipe aproximou-se, e, como quem pede desculpa, tentou abraçá-la calmamente como pedido. «Escusas, é tarde demais…». E, num movimento rápido e ágil, trancou-se no quarto, onde passou o que restava do dia. Filipe encostou-se à sua porta e várias vezes se tentou desculpar. Nenhuma resposta vinha do interior do quarto, e o único som que lhe chegava do interior era o som do choro e dos passos inquietos de Luísa. Assim passaram também o crepúsculo e a noite. Filipe adormeceu ali, de cabeça encostada no rebordo da porta e de costas e pescoço torcidos contra a madeira dura. Desconfortável, sonhou com Cristina e sonhou com Luísa. Todos os sonhos eram memórias. Reviu o dia do atropelamento e reviu a recente alteração de humor da namorada. Luísa não andava estranha só desde o atropelamento… Sonho a sonho, o inconsciente de Filipe trouxe-lhe à memória uma e outra ocasião em que Luísa andara fora de si. Que se passará afinal? Os sonhos misturavam-se com pensamentos e raciocínios numa correria cerebral que ficaria sem conclusão, tal a brusquidão do despertar.

Acordou com um grito estridente e prolongado. Outro se seguiu, ainda mais longo e desesperado, e depois veio o choro interminável. Luísa chorou e chorou, e todas as perguntas desesperadas de Filipe ficaram sem resposta. As lágrimas ameaçaram também os olhos de Filipe, tal o desespero e a ânsia em que se encontrava. Que se passaria do outro lado da porta!? Nos poucos minutos que se passaram, Filipe esperou e desesperou. Mas, finalmente, Luísa abriu a porta. Quando o fez, vinha com uma expressão de puro pânico. Apavorado, não falou. Olhou a namorada assustada com uma cara preocupada e inquisitiva. No entanto, nada na impressionante expressão de Luísa se alterava. Os olhos, num cavado negro, olhavam-no como quem o trespassava. Algo se passara, naquela manhã. Teria Cristina morrido!? Depois de muito esforço, ultrapassou o nó que lhe prendia a garganta e perguntou relutantemente: «Que se passou?».  Com o rosto paralisado e os olhos fixos em Filipe, Luísa levantou roboticamente o braço direito. Só então Filipe o viu. No braço erguido de Luísa, cruamente anunciando a morte de todos os sonhos e planos que devia aos seus esforços e aos do irmão, Filipe viu o teste de gravidez.