sábado, janeiro 05, 2013

‘Gerações’- Capítulo 25

Robert Smith (Geração 2098)

O treino da ALT3RER era intenso e completo. Nenhum entrave ao uso da racionalidade deveria persistir num Capitão. Como tal, Robert era especialista na supressão dos seus próprios sentimentos. O seu evento amnésico tinha, no entanto, aberto uma brecha nas masmorras do fundo do seu ser. Desde que a tal desvario fora sujeito, Robert sentia dificuldades crescentes em abafar as emoções. Dois nomes mexiam particularmente com as suas entranhas: Lisa e Lukas. Regressava do hospital de campanha, onde mudara o penso do ombro esquerdo, quando pela primeira vez se cruzou com Lukas. Lukas era um dos Primeiros Agentes que viera em missão sob seu comando. Na sua ausência, fora eleito Comandante Provisório da missão pelos restantes Primeiros Agentes. E, pelos vistos, a eleição fora fácil e pacífica, tal era a popularidade que Lukas Becker reunia entre toda a equipa de Robert. Após a primeira consulta que tivera quando voltou a si, Robert seguira o conselho do Doutor Herrera, decidindo manter-se longe do seu lugar como Capitão até se recompor física e emocionalmente. Por aconselhamento do próprio médico, também ele elemento da ALT3RER, Robert decretou então que Lukas Becker deveria continuar a comandar por tempo indeterminado.

Assim era. Há quatro dias que Robert descansava e reflectia. Todos os dias lhe vinha à memória o dia em que fora alvejado no ombro. Alguém tentara assassiná-lo com um tiro no peito, sabendo que a sua morte decapitaria a missão da ALT3RER na cidade. Não fosse a sua rápida reacção, e poderia agora estar morto. Um Capitão precisa de 15 anos de treino… A minha morte resultaria numa missão comandada por um Primeiro Agente, ou numa longa espera por um novo Capitão. O inimigo conhece-nos. Sabe por que regras nos regemos, como actuamos, o que cá viemos fazer… Esta missão não será, nem de perto nem de longe, aquilo que augurava ser antes deste tiroteio… A intuição de Robert rapidamente se tornou convicção, e pouco mais tardou a chegar a certeza. Lukas Becker actualizava-o pouco a pouco. Pelo que Robert ouvia nos seus longos passeios pelo Quartel-General, Lukas mal podia esperar por ver-se livre do comando… Mesmo sendo amado, admirado e respeitado, Lukas era humilde, simples, e aparentemente nada dado ao poder; era bom a comandar, mas não parecia gostar de o fazer. Por que será que desconfio sempre de quem parece tão correcto?… As actualizações apresentadas por Lukas não eram minimamente animadoras. No entanto, o Primeiro Agente tinha tomado todas as precauções que Robert tinha descurado; distribuíra as forças da ALT3RER de forma inteligente entre a defesa do Quartel-General e o combate externo ao crime na cidade; motivara os Agentes, e dera esperança ao povo da cidade numa estrondosa comunicação televisiva que fizera disparar as contribuições dos cidadãos na denúncia dos criminosos e corruptos. Aos olhos de Robert, o comando de Lukas Becker era imaculado. O Quartel-General vibrava de energia, enchia-se de civis, e poucos pareciam notar a ausência do Capitão. Entre as desconfianças em relação à suposta perfeição do seu substituto, Robert começou a assumir, no seu íntimo, que talvez estivesse magoado por ter sido esquecido. Por muito que lhe custasse admitir, podia estar a sentir ciúme, ou até inveja do seu colega alemão… Ao quinto dia de recuperação, começou a duvidar de si, mais do que de Lukas. Duvidou das suas medidas e dos seus métodos. Das suas tácticas mal aplicadas e da confiança excessiva quanto à sua própria protecção. Embora solitário, Robert não era orgulhoso nem via em si um grande valor. Talvez por não compreender a importância que tinha como indivíduo no esquema da ALT3RER, baixara a guarda e sujeitara-se a morrer displicentemente. No entanto, contrastando com a sua importância para a organização que representava, Robert sentia-se agora inútil como comandante daquela missão.

Mais dias passaram, com Robert esperando secretamente algo de errado que desse o mote para o seu regresso. Sentia-se mal consigo mesmo por dar por si a desejar o mal da organização à qual dedicara a vida, mas não conseguia já esconder de si próprio o ódio que nutria, crescentemente, por Lukas Becker. No entanto, nada corria mal ao seu Primeiro Agente, e o governo de Lukas era competente, inteligente e dinâmico. Robert evitava-o mais de dia para dia. Evitou-o a um ponto que excedeu a discrição, e Lukas apercebeu-se que estava a ser fintado. Foi então que chamou Robert ao gabinete de Comandante. Baralhado e desconfiado, Robert acedeu ao seu convite. Que quererá este novato?… Ele que me repreenda, e veremos se não retorna de imediato às suas verdadeiras funções… Bateu à porta, e até a espera por permissão para entrar o fez sentir submisso a Lukas. Entrou finalmente no gabinete, e esperou que fosse Becker a quebrar o gelo.

«Boa tarde, Capitão», cumprimentou Lukas. «Boa tarde», respondeu carrancudamente. «Não sei se imagina a razão pela qual o chamei, Capitão…». Lukas falava cordialmente, mas Robert não conseguia evitar sentir que existia cinismo por trás da simpatia. Como tal, não respondeu à pergunta, e teve de ser Lukas a retomar o discurso: «Espero não estar a incomodá-lo, Robert… Mas gostaria de dar-lhe uma palavrinha sobre o seu comportamento mais recente». E então sorriu-lhe, tão amável quanto todos o descreviam; as suas palavras, no entanto, atingiram Robert com violência. «O meu comportamento?… A que se refere, Lukas?». «Não me interprete mal, Robert! Não estou aqui para o julgar nem criticar. Aprendi muita coisa nos meus dez anos de treino, e uma delas foi a importância de ter sempre noção do meu papel. E a minha função, aqui, não é mandar; nem avaliar nem julgar os meus superiores. A minha função, aqui, é ajudá-lo. E seguir as suas ordens. Só um, dos cem Agentes que moram nesta casa, foi talhado para nos liderar. E essa pessoa não sou eu. Nem nenhum dos outros». Robert olhou-o, ainda desconfiado. «Porque é que haverei de ser eu a liderar, quando falhei?» «Todos falhamos, não é verdade? Não é isso que nos dá valor. O que nos dá valor é a forma como reagimos a esses erros, como os usamos para nos tornar mais fortes. E ninguém erraria menos que o Capitão, na sua posição». Robert riu antes de ripostar: «Ora ora… Quanta humildade! Basta olhar para si para perceber como o que diz são palavras vazias. Lukas, será que não vê que fez no meu lugar um trabalho bem melhor que o meu?… Se há alguém aqui que sabe liderar não sou eu, claramente!» «Robert…» Fez uma pausa longa, como quem pesa bem as palavras que vai dizer a seguir. «Robert, peço desculpa por dizê-lo assim, tão friamente, mas eu não fiz mais do que aprender com os seus erros. Não fiz mais do que pôr em prática o que esteve desde sempre planeado, tendo o cuidado de aprender com o que tinha corrido mal. Cada missão é uma missão. E esta é uma cidade única. O que resultou nas cidades já conquistadas não resulta necessariamente aqui. E embora o estudo de missões mais antigas não nos dê a fórmula perfeita para aplicar nesta cidade, também é verdade que, tendo estado cinco anos a fazer formação específica para se tornar Capitão, ninguém sabe melhor que o Robert que opções temos para aplicar aqui. Todos os que aqui estão precisam de si, mesmo que não o sintam ainda. O que eu fiz não foi mais que apagar os fogos que foram aparecendo. É preciso algo mais do que isto, é preciso avançar sobre o crime e limpar esta cidade. É preciso atacar… E nem eu nem nenhuma outra pessoa nesta casa tem os conhecimentos ou a experiência necessária para o fazer. Este lugar é seu, como sempre será, e só consigo neste lugar conseguiremos fazer frente à imensidão de perigos que nos esperam fora destas paredes. Não é comigo, mas consigo ao poder que faremos desta cidade uma cidade branca!» De cabeça apoiada nas mãos e olhos fechados, Robert encheu-se de orgulho e confiança e força, absorvendo cada palavra que Lukas lhe dirigira. Não falou, durante muito tempo. Deitou então por terra todos os medos e todas as desconfianças, e apenas disse uma palavra antes de sair do gabinete: «Obrigado…»

Nesse mesmo instante, seguiu para o hospital de campanha, e anunciou a Herrera que se sentia pronto para voltar ao seu posto. Após criteriosamente avaliado pelo médico da sua equipa, acolheu com satisfação a recomendação do clínico, que o aconselhou finalmente a reassumir o seu lugar de comando. Nesse mesmo dia retomou o comando da missão, e nesse mesmo dia escolheu o seu sucessor. Robert não queria um desconhecido a pegar no seu trabalho, nem alguém que não conhecesse a realidade daquela cidade. Se por alguma razão fosse incapaz de finalizar a sua missão, queria alguém de confiança a liderar os seus homens. Esse alguém, era Lukas Becker.

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