? (Geração ?)
Tudo era uma incógnita desde que acordara no hospital de paredes de lona branca. Disseram-lhe o seu nome, disseram-lhe o que fazia e puseram-no a viver onde vivia anteriormente. Nem assim. Nada lhe vinha à memória. Não se lembrava nem de quem era, nem de quais eram os seus gostos, as suas qualidades, os seus defeitos, os seus medos… Nada. Estava perdido no mundo. Já não estava sozinho, mas sentia-se sozinho. Quem não se tem a si mesmo, não tem ninguém. Quem não se conhece, não conhece o mundo ou a sua posição nele. Quem não se recorda, não é ninguém, nem nada. E portanto, era nada. Um nada a vaguear escadas acima escadas abaixo, como uma barata tonta à procura de algo que o fizesse voltar a si. O médico dissera que um objecto, uma pessoa, um retrato, uma fotografia, enfim… qualquer coisa podia ser o clique de que precisava para acordar e voltar a si. Até agora, nada tinha funcionado. Já olhara aquela casa, aquelas camas, aquelas secretárias, aqueles documentos, aquelas pessoas, e nada. Nada, nada, nada.
Estava sentado agora naquilo que lhe disseram ser uma sala de espera. Sentara-se ali, naquele sofá branco, porque se sentia ali confortável. Sim, por isso e nada mais. Nada mais porque não sabia o que fazer, o que dizer, o que… enfim, nada. Nada sabia e nada podia fazer enquanto não soubesse. Deu por si a divagar no sofá. Não sabia bem se estava acordado ou a dormir; quiçá estivesse naquela transição meio-sono meio-vigília, em que controlamos o que nos passa pela cabeça até que os sonhos tomam o comando e pegam nas rédeas para as suas mãos, umas vezes cruéis, umas vezes generosas, outras vezes malévolas e aterradoras. Estava então nesse meio-cá meio-lá quando uma ideia lhe assombrou o pensamento. E se eu ficar assim para sempre? Que será de mim? Desde que acordara, ainda não pusera aquela hipótese. Serei para sempre este vegetal com pernas? Este ninguém, esta nulidade, esta… coisa? Serei para sempre… ninguém? Sem um propósito, uma função, uma família?… O mero pensamento deixava-o arrepiado. Não, não poderia deixar essa eterna incerteza tomá-lo… Se não voltasse de novo a si, teria de iniciar uma nova vida. De ter novos sentimentos, novos propósitos, novos conhecimentos…
Foi então que se dirigiu ao Doutor Herrera e lhe pôs esta questão em cima da mesa. «À partida, esta amnésia deve ser reversível… Para ser honesto, não cria sequer que se prolongasse por tanto tempo. Mas… nada deve ser descartado, na verdade. Não há certezas na medicina. Apenas probabilidades. E embora não creia que a amnésia retrógrada total e definitiva seja provável no seu caso, não posso negar tal possibilidade! Não estaria a ser correcto se o fizesse…» «Compreendo», anuiu. É então altura de começar de novo. Não serei ninguém a vida toda. Nem um vegetal nem uma marioneta. Preciso de começar de novo… Mas então se apercebeu de algo mais: não sabia por onde começar. Nem sabia o que poderia fazer, nem por que carreira enveredar. Não tinha gostos que conhecesse, ou jeito para o que quer que fosse. Não tinha uma base; um conhecimento sobre si próprio, ou sobre o que o rodeava… Estava preso. Preso no vazio. Num vácuo de tudo, num total nada. Tampouco era esta nova situação um renascimento, pois não lhe tinha sido concedido o direito de crescer, de aprender, de se desenvolver, e de ganhar jeito para as coisas, gosto pelas coisas, gosto pelas pessoas, nada, nada, nada!..
Envolvido neste turbilhão de pensamento, foi deitar-se e esperou um novo dia. Outros dois dias de incertezas e filosofias se seguiram, e então decidiu partir. Partir dali, e procurar um especialista que o Doutor Herrera indicara. Pelos vistos, o sítio onde morava não era a sua cidade natal. Herrera aconselhara-o a voltar às suas origens, e talvez isso mudasse a sua situação. Um dia demorou a arrumar as ‘suas’ coisas, e então disse-se pronto para partir. Despediu-se das duas únicas pessoas que conhecia nesta nova vida. A enfermeira, e o Doutor Herrera… Ali ficava o seu apoio, ali ficavam as suas memórias, ali terminava todo e qualquer carinho que pudesse ter encontrado. Ali, naquela casa, deixava pouco, mas deixava tudo… É tempo de partir!
Passava pela sala de espera do sofá branco enquanto incitava a sua coragem a vencer o medo do desconhecido. Aproximava-se a passos largos da porta que abria o caminho de um mundo novo, quando por essa mesma porta entrou uma resplandecente mulher de vestido vermelho-vivo. Energia e alegria saltava do sorriso de Lisa. O seu caminhar ditava o ritmo a que os relógios se moviam naquela sala, e conduzia o olhar de cada homem ali presente. Lisa… Lisa! LISA!!! Lisa Del Piero! E então, tudo lhe invadiu o pensamento; inundou-se num mar de emoções. As ondas chegavam, cavalgantes e arrebatadoras, uma atrás da outra. Memórias e conhecimentos. Raiva e paixão, saudade e ressentimento, amor e ódio… Chegavam de mão dada as antíteses, onda atrás de onda, para sua louca alegria. Rejubilou ao sentir-se afogado nas suas velhas e novas opiniões, nas suas velhas e novas paixões, na sua consciência e na sua auto-percepção… Lembrou-se do dia em que pela primeira vez cheirou o perfume de Lisa, do dia em que lhe fora dada a missão, do dia em que fora armado Primeiro Agente, dos dias e dias e dias, das suas pessoas, dos seus objectivos, do seu propósito! Da sua recuperada vida!!! Os seus olhos jorraram emoção às golfadas, alegria e esperança, vida, vida, vida!
«O meu nome é Robert…», disse. Riu e riu e riu, enquanto chorava, feliz. «O meu nome é Robert… Robert Smith!»
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