Eduardo Fanecas (Geração 2098)
O sonho era o mesmo, noite após noite. No sonho, era forte. Poderoso. Dominante. O sonho era uma memória. A memória daquele pescoço, daqueles pedidos de misericórdia. Daquela fraqueza, do seu controlo. Quando acordava, sentia-se fraco. Pobre. Subjugado. O assassínio de Ricardo Brás não lhe saía do pensamento. Sentia-se louco. Não lhe servia comer, não lhe servia beber, não lhe servia dormir. Quando terminava, tinha sempre sede de poder, fome de poder. Estava sempre cansado de não mandar, de não decidir, de não matar. A sede mata, a fome corrói, o cansaço destrói. Eduardo sentia-se perdido e vazio. Perdera o pai, e matara o seu maior inimigo. Não havia ninguém mais no mundo que quisesse castigar. Não havia carne que lhe matasse a fome.
Não percebia quem era, ou em quem se tornara. Ofuscado por uma penumbra de embriaguez, deixou a estalagem e deu por si parado numa berma de estrada simulando uma avaria no carro. A desnecessária ajuda chegara: um camionista solidário aproximara-se e perguntava-lhe o que tinha acontecido. Felizmente, pouco teve que o ouvir falar. Enfiou-o na mala do carro, e daí em diante só teve que o ouvir guinchar… Enquanto guiava o carro para o interior da floresta, saboreava cada grito. Cada pedido de ajuda. Saboreava o domínio sobre aquela pobre alma, e percebia que não fora a raiva da vingança que lhe dera satisfação no assassínio de Ricardo Brás. Mais que a vingança, fora o assassínio per se que o excitara. No mais remoto local que conseguiu atingir com o carro, na floresta, tirou o homem da mala do carro, atado de mãos e pernas. Tal como a Brás, não lhe ofereceu a misericórdia da morte rápida. Antes pelo contrário, brincou com o homem como um tubarão brinca com a foca, ou o tigre com a gazela. Deixou-o fugir e perseguiu-o. Foi arremessando pequenos objectos e fê-lo sangrar como um touro na tourada. Foi atacando, rindo, perseguindo e rejubilando a cada passo. Podem ter-se passado horas, dias ou minutos. Não saberia dizer. Não tomara conta ao tempo, nem à luz, nem à fome ou ao sono ou à sede. A perseguição era tudo. A sua força multiplicou-se, a resistência exponenciou-se. Uma vez mais foi a criança alegre que fora, e o homem que imaginara ser. Estava bêbedo de êxtase, inundado de excitação, exultação, alegria…
A matança terminara com decapitação. Não mais se sentia adormecido. Estava de novo em si. Já se voltara a reconhecer, já se voltara a amar. Estava de novo vivo. Coberto de sangue, banhou-se no ribeiro gelado do bosque. Sentiu-se limpo e preenchido, quando trespassado pelos acessos gelados da corrente. Não mais se sentia louco, ou perdido. Não mais sentia compaixão por quem lhe era desconhecido. Uma conclusão outrora assustadora parecia-lhe agora mais razoável… Teria que matar para não se sentir louco! Naquele ribeiro gelado, decidiu que não se deixaria esmorecer, e não mais se sentiria vazio. Estava disposto a correr o risco… Mais valia viver pouco e bem, que muito e mal. A sua mente aceitara-se, finalmente, a si própria. Dessa aceitação, nasceu aquele que ficaria na história como o Assassino Transparente…
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