segunda-feira, agosto 27, 2012

‘Gerações’– Capítulo 6

Eduardo Fanecas (Geração 2098)

Enquanto olhava o pai no caixão, as lágrimas corriam soltas e livres. O cheiro das velas queimadas representava na perfeição o ambiente pesado daquela igreja vazia. Selénio Fanecas sempre fora ateu. No entanto, na carta de suicídio que lhe deixou, pedira para ser enterrado conforme o princípio Cristão, que desde 2058 realizava cerimónias fúnebres a suicidas que não tivessem levado ninguém consigo para a morte. Selénio dedicara toda a sua vida a uma longa procura pela eternidade. Seguindo as investigações do pai, do avô e bisavô, fez crescer o corpo de conhecimento que vinha sendo acumulado. No entanto, as mais recentes descobertas de Selénio refutavam de maneira veemente a possibilidade da imortalidade ser atingida. Com a perda do seu bem mais precioso e da sua razão de viver, a sua vida deixara de fazer sentido. Por isso se havia suicidado, pela vergonha do falhanço e pelo vazio de objectivos. A sua vida e inteligência haviam sido desperdiçados. Eduardo amava o pai como nunca amaria mais ninguém. A sua decadência recente alterara-o, mas a sua morte matara-o por dentro. O vazio de peito assustava-o, e a falta de forças tornava-se gritante.

Este dia, no entanto, era um dia de libertação. Eduardo não queria desperdiçar a sua vida como o seu pai fizera. Por isso, antes de lhe conceder o desejado funeral e subsequente enterro, vendeu o bar de alterne a Mário Rato para se desfazer do passado. Deu também toda a roupa e todos os bens, tanto os seus como os do pai. Vendeu o carro e a carrinha e tudo que o pudesse prender ao passado. No entanto, as memórias não se vendem nem dão nem perdem. E a dor muito menos.

Na sua nova casa, um mero quarto de hotel, Eduardo passou dois dias fechado em total escuridão. Não dormiu. Chorou, gritou, partiu espelhos e jarros e janelas, mas não abriu a porta a ninguém quando o vieram chamar. No dia seguinte, foi expulso do hotel, retirado à força pela polícia. Uma noite passou na esquadra, e na seguinte instalou-se numa estalagem. Nesta estalagem dormiu, pela primeira vez desde a morte do pai. Ao acordar, decidiu que era tempo de recomeçar. Mas que farei agora da vida? Toda a sua instrução se centrara naquela investigação e na gestão do bar. Terão morrido também os meus objectivos? Eduardo sabia que era uma espécie de clone forçado de todos os seus antepassados Fanecas, mas aquilo que os Fanecas faziam era apenas investigar, gerir, matar. Matar… Matar… Porque matariam os Fanecas? A gestão do bar assegurava os custos da pesquisa, mas o assassinato… Porque o fariam todos os Fanecas? Seria uma necessidade? Ou seria um prazer?… Subitamente, a curiosidade invadiu-o. Quis saber o que sentiram o pai, o avô e o bisavô. Levantou-se, abriu as portadas e sentiu o Sol. Sentiu a felicidade de quem tem objectivos. Sabia exactamente quem queria matar…
Brevemente, Capítulo 7

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