Cristina Feliz (Geração 2012)
Tomava um relaxante banho de imersão quando o telefone tocou. Sentia as bolhas de espuma roçar-lhe nas pernas e a brisa fria tocar-lhe o corpo molhado enquanto se erguia da banheira quente. Atendeu e era Luísa quem lhe ligava. Luísa Silva era uma rapariga mimada e elitista, mas Cristina sabia que era também carente. Por isso, não a punha de lado como a maior parte dos colegas. Desta vez, Luísa ligava-lhe para a convidar para sair nessa noite. Sem planos para essa noite, nem qualquer uma das noites que se seguiam para dizer a verdade, Cristina anuiu. Voltou à banheira onde passou mais uma hora relaxando com a música a tocar baixinho. Quando chegou a hora fez um pequeno compasso de espera para chegar com o habitual ligeiro atraso, e dois passinhos depois estava no centro da cidade, onde costumavam sair.
Cristina e Luísa tinham 19 anos e tinham concluído o 2º ano em Gestão nesse mesmo ano. Com elas, estariam nessa noite Lily Smith, Filipe e Fernando Torres. Filipe era o namorado de Luísa, e andava no 4º ano de Engenharia Física, tal como Lily. Já Fernando, era o irmão mais velho de Filipe. Eram portanto um grupo de 5 que poderia ser de 6 se Marlene Rossas, colega de Lily e Filipe, tivesse aceite o convite de sair com eles.
Cristina deixou-os discutir, como sempre, o bar a que iriam nessa noite. E como sempre, acabariam na fila do Tree Bar, um bar agradável mas constantemente apinhado de gente. Estavam agora à espera naquela enorme fila que corria no passeio da berma da estrada. Cada pessoa que entrava era primeiro revistada, o que dava azo a todo aquele tempo de espera. Filipe e Luísa namoriscavam a um canto, e foi Lily a quebrar o gelo no agora-grupo-de-3: «Como eu adoro esperar…» «Não adoras mais que eu», disse Fernando. «Bem, tendo em conta o perigo em que a noite da cidade se estava a tornar, não se pode dizer que seja por uma má razão». «Sim… Há males que vêm por bem. No entanto, este é caso raro. A maior parte da cidade, para não dizer do país ou mesmo do mundo, continua num processo de apodrecimento a larga escala que dificilmente será travado enquanto esta geração caminhar sobre a Terra». Cristina assistia calada e introvertida à conversa entre Lily e Fernando, que a pouco e pouco se foram esquecendo da sua presença. Cristina via ali uma química interessante, embora nenhum dos dois, por muito embrenhado que estivesse na conversa sobre justiça e segurança, parecesse querer admitir.
Perdida nos seus pensamentos, Cristina foi acordada do bréu dos seus miolos funcionantes pelo som de uma travagem a fundo. O segundo que se seguiu, pareceu uma hora. Enquanto virava a cabeça para satisfazer a sua curiosidade, sentiu o futuro ensombrado. Ainda mal começara a virar a mioleira e já via a luz de um dos faróis da carripana pelo canto do olho. A carrinha estava a uns 4 ou 5 metros de si. Vinha descontrolada, guiada por um homem que freneticamente oscilava o volante procurando um milagre que evitasse a colisão. Pior: vinha a uma velocidade tal que nem os melhores travões da cidade o fariam parar a tempo de evitar varrê-la. Pensou rápido. Sabia que não podia correr e fugir a tempo, sabia que não se atiraria para o lado para que lhe esmagassem as pernas, sabia tudo o que não queria, mas não sabia o que queria fazer… Viu as duas luzes de frente, agora. Os faróis continuavam a aproximar-se como que em câmara lenta. Instintivamente, como se as memórias dos mais diversos filmes de acção lhe viessem repentinamente à cabeça, decidiu saltar para embater com o capot da carrinha, que tinha um ângulo bem mais suave do que o recto pára-choques. Depois, pouco custou. Sentiu durante mais um eterno segundo o embate frio de chapa no flanco e depois o estilhaçar de vidro nas costas. Doeu muito, mas por pouco tempo. Depois desse segundo, era tudo negro. Era tudo nada. Tudo vazio. Aí, nada custou.
Brevemente, Capítulo 3
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