Estava já a decorrer o nono dia (é verdade, nono!), após a fatídica notícia que tinha mudado a minha vida. Acordei com uma preguiça imensa. Como se pudesse sequer sair dali e fazer alguma coisa... Enfim. Espreguicei-me com toda a força que ainda me restava e expressei um bocejo fenomenal. A minha mãe, que tinha mais uma vez dormido a meu lado, na já sua cadeira, acordou ao ouvir o bocejo. Sorriu-me como sempre, expressando a pequena parte dela que ficava feliz por ainda me ver vivo, escondendo por momentos todo o resto de si, que chorava intensamente o meu actual estado. Já tinha passado a fase do «sentes-te bem?». Por muito que eu soubesse que essa pergunta que antes me fazia era não mais que uma pergunta retórica, incomodava-me esta mudança que sentenciava definitivamente a minha curta vida. Já não havia mesmo nenhuma esperança. E a intensa dor que de repente me atingiu o abdómen, aumentou este sentimento de incrudelidade num futuro promissor.
Estava já semi-morto. Pelo menos sentia-me assim. Já não havia nada a fazer, e nada a disfarçar. A medicação ajudava a controlar os ataques insuportáveis de dor, mas não os apagava completamente. Continuava com aquela dor incrivelmente poderosa que parecia esmagar cada parte de mim... Concentrei-me na dor (algo que não devia fazer), e apercebi-me que estava ainda mais forte; ainda mais intensa; ainda mais insuportável. Estava definitivamente prestes a morrer, mas não conseguia, de todo, conceber tal coisa. Sobretudo antes de o Peter chegar. Como é que eu poderia partir sem me despedir de uma das pessoas mais importantes da minha vida? Não o faria. Ia aguentar até que ele chegasse. Faria o tudo por tudo, como tinha já feito até aqui. Ele chegava hoje, por isso aguentar-me-ia mais umas horitas. Não ia custar... Agora que pensava no que de facto me tinha custado até aqui, apercebi-me de que nada, até agora, me tinha custado verdadeiramente. Tinha obviamente tido momentos terríveis, em que o sofrimento me tinha assolado de forma incrivelmente intensa. Nessas alturas, cheguei a pensar que nada me faria sofrer mais. Nessas alturas, sentia como se me tivessem morto com uma chuva de balas; se me matassem com um bomba atómica, não faria diferença. A dor seria a mesma. Mas nunca maior. Esse era o meu pensamento, e enganei-me redondamente. Agora que estava tão tão tão perto da morte, mais perto que nunca, percebia que essas não tinham sido, de facto, situações custosas. Tinham sido situações difíceis, complicadas, situações que me tinham feito sofrer... Mas agora não faziam diferença alguma. Não me custava de facto pensar nelas. No resumo da minha vida, a maior parte delas não apareceriam. Porque por muita importância que elas tivessem tido na sua altura, agora não me marcavam. Não me definiam como pessoa que era, não tinham influência no meu fim... Decerto me mudaram como pessoa, e me fizeram uma pessoa melhor, ou pior, mas em nenhuma forma de comparação seriam tão importantes, tão marcantes, tão custosas como o momento que estava para vir, cada vez mais e mais perto. A morte, essa sim, iria marcar vincada e definitivamente a minha vida. Na verdade, ia mesmo terminá-la. E essa sim, era a situação verdadeiramente custosa pela qual eu ia passar. E a qual queria tanto, tanto evitar... Ou, pelo menos, adiar; adiar por uns anos. O que eu não dava para a evitar; o que eu não dava para a adiar... O que eu dantes consideraria completamente louco e inexequível, agora aparecia-me como alternativa. Isto, se fosse possível. Se fosse possível tornar-me imortal, ou pelo menos um mortal com uma vida mais longa... Apercebia-me agora como, de facto, a aproximação galopante da morte muda as prioridades de uma pessoa; como muda os seus objectivos; como muda os seus planos; ou como muda a perspectiva dos meios a utilizar para alcançar os fins. Como eu desejava escapar à morte... Tudo tinha sido virado do avesso, tudo! A mim, nunca me tinha agradado a ideia de algum dia vir a ser imortal. O viver para sempre apresentava-se como algo pobre, chato, doloroso… Os seres eternos, ainda que meras personagens de ficção, sempre tinham aparecido na minha mente como condenados. Condenados a viver em tempos que não eram os seus, condenados a vaguear para sempre sem razões para viver, condenados a algo que nem vida era: vida só tinha verdadeiro significado, se fosse seguida de morte... Lutar pela sobrevivência seria escusado, tentar adaptar-me seria mentir a mim próprio, e relacionar-me com pessoas dar-me-ia uma felicidade efémera, e uma dor eterna… Delas, a morte não fugiria. Sempre quis viver muito. «Para além dos cem», pensava eu… Mas esses cem, seriam os meus cem. Numa eternidade, todo o tempo é nosso, o que é o mesmo que dizer que nenhum o é. E por isso detestava a eternidade. Apesar de não a perceber, de não a sentir, de nem a conseguir imaginar, detestava-a, e recusá-la-ia se ma quisessem oferecer. No entanto, agora que penso na dentada de um vampiro, na pedra filosofal, na vida de um elfo… Desejo-a! Desejo essa eternidade. Desejo-a mais que a simples vida, mais que a luta pela sobrevivência, mais que tudo… Desejo-a. Desejo-a profundamente. Desejo, desejo, desejo. Tenho sede dela, fome dela, ânsia dela, vontade de a ter, vontade de a viver, vontade de a sentir... É incontrolável a vontade que tenho dentro de mim, de viver; de não morrer; de não deixar as pessoas que amo, as coisas que amo, o mundo que amo... É aflitivo estar como estou. É assustador. É terrível. Inimaginavelmente terrível. É doloroso, e é degradante... Não me deixes, vida.
Capítulo 9 de ‘Sete’, por Eduardo J. (2009)
ResponderEliminarBrevemente, Parte II