Sinto uma lágrima a escorrer-me pela cara. Em vez de se dirigir ao queixo, como eu estou habituado, a lágrima escorre-me pela bochecha, e vai cair na almofada. É o que dá estar deitado, é o que dá não me conseguir levantar. Já nem posso chorar decentemente... Raios, que frustração! Não me fico por uma lágrima. O stress, a saudade, a frustração e o medo, encarregam-se de trazer mais e mais lágrimas aos meus olhos. Vá lá, pelo menos sinto-me vivo! Chorar é um acto de vida; nunca me tinha apercebido de tal coisa... A água a sair dos nossos olhos, a encontrar a nossa pele, a correr por ela, a cair pelo ar... Vida, vida, vida! Só vida! Mais: eu sei que enquanto chorar, o meu cérebro estará certamente a funcionar, e eu estarei vivo! Estarei vivo para ver o meu irmão. Estarei vivo para ver as pessoas que amo. Dia após dia. Estarei vivo para ouvir cada som, cheirar cada odor, sentir cada toque, saborear cada gosto, ver cada imagem, cada movimento, cada cor... Estarei vivo, para me aperceber de toda a vida que a vida tem. Para me aperceber da pouca vida que ainda me resta... E por isso mesmo, por esta mensagem de vida, por estas consequências da vida, não tentarei suster as lágrimas que os meus companheiros stress, saudade, frustração e medo me ofereçam; nem pela minha mãe. O que para ela representará, possivelmente, dor ou tristeza (também presentes em mim), para mim representa e representará vida, ou o que quer que reste dela... Continuo a chorar, num misto de alegria e tristeza. A minha mãe também já chora. Agora é verdadeiramente ela que está aqui. É isso que eu sinto. A sofrer comigo, mas sem o sofrimento e o esforço do disfarce autoimposto. Estamos finalmente em sintonia, neste horrendo quarto de hospital… Bateram à porta. Deve ser o pessoal do costume: a minha força… São eles. As lágrimas encheram-me os olhos como se de um rio se tratassem. Que afluência de felicidade! Não havia nada que eu mais quisesse deles, senão a sua presença. Senão o seu apoio.
Passaram horas e uma porta se abriu. É o momento. Vejo a cara dele... Vejo o seu rosto e o seu corpo, sinto a sua presença, numa imagem já manchada e distorcida. Uma fracção de segundo, que valeu uma vida. Mais uma vez, a água fala por si. Cá vem ela... Em abundância continua a vir, carregada de significado, carregada de sangue, carregada de alegria... Nunca pensei acabar assim. Feliz por tê-lo aqui comigo. Na verdade, foram capazes de ter sido uns meros 2 ou 3 segundos. Porque o que eu queria era vê-lo antes de morrer. Tê-lo perto antes de partir. Estar com ele, fosse como fosse. Mas eu não aguento mais. Já não tenho forças, e todas as que tinha, esgotei-as usando-as ao máximo dos máximos para chegar a este momento. Sei que a solução para mim não chegará, e sei que no jogo da vida, não há segundas oportunidades. É duro escrever isto, mas para mim, a oportunidade passou. Passou, e foi fantástica. Tão fantástica quanto escrever este texto, tão fantástica quanto viver cada momento, cada momento de vida: alegria ou tristeza, porque seja como for, é vida. Foi fantástico conhecer quem conheci, sentir o que senti, e desfrutar o que de melhor as pessoas têm a dar. Porque são elas que sempre me fizeram viver, e sempre me fizeram querer continuar, e viver mais, e ser mais feliz, e chegar a algum lado. Porque foram elas que me fizeram feliz, e é a elas que amo: mais que a mim, e mais que à minha vida. São elas. Elas, e só elas. E por isso me custa deixá-las. Custa, mas tem que ser. Sei que chegou a minha hora, sei que não tenho forças para continuar, sei que já vivi o suficiente para me chamarem sortudo, por muito mais que quisesse viver. O que não vivi abundantemente em tempo, vivi em sensações. E preferi ter abundância de vida enquanto sentimento, actividade, energia e alegria, do que abundância de vida enquanto tempo. Pudera ter eu aproveitado melhor!... Mas não me queixo: não me queixo mesmo, e a maior das penas que agora tenho é não poder despedir-me e dizer a esta gente o quanto lhes agradeço, o quanto as quero, o quanto as amo, amo, amo!... E por isso o deixo aqui escrito: para que leiam, com olhos de ver e coração bem aberto, porque de lá, eu nunca sairei. Ou pelo menos do meu, nunca eles sairão: esteja ele onde estiver, com quem estiver, ou em que condições estiver. Eles são a minha vida. Repito, e volto a repetir quanto for preciso. A esperança é a última a morrer. Pois bem, a minha morreu. Já não tenho a esperança de viver, sou sonhador mas não utópico. Vou com a felicidade do último momento, e vou com a felicidade de todos os momentos. Morro feliz. Quantos se poderão dar a esse luxo? A esperança irrealista dos outros vai ter agora, finalmente, o seu fim. Nenhuma cura chegará a tempo, e nenhum milagre acontece por estas bandas. A Terra é o lugar de vida, e vida não combina com milagres. Vida é para ser vivida, enquanto animais, e puros homens que somos: livres de outrem. Vida é realidade. E a realidade não vive de utopias nem milagres. Os nossos milagres, fazêmo-los nós com o esforço de cada momento. Fazêmo-los nós com o sofrimento se tal for necessário, mas chegamos a algum lado. Por mérito próprio. E nesta Terra de realidade, me orgulho de ter deixado a minha marca. Marca que se esvanecerá em meia dúzia de anos, e que não será eterna como sempre desejei. Morrerá com os Meus. Que sempre amarei. Não há mais forma de arranjar força. Não há mais forma de continuar. Estou fraco, e já quase não funciono. Só a minha cabeça ainda vagueia por este mundo. Já tudo o resto se foi. Já tudo o resto se desligou. Por esta altura, nada que pense será transmitido, e, como tal, a minha vida acabou. Tudo o que pensar agora, não sairá daqui, e acabará comigo. Nunca ninguém saberá disto e nunca isto chegará a lado algum. Daqui a nada, todo este pensamento morre. Definitivamente. É por isso que agora, e só agora, posso admitir: sempre tive um fraquinho pelo Braga... Mentalmente, esbocei o maior sorriso da minha vida. Respirei fundo, muito muito fundo, e, de peito cheio, mergulhei de vez na minha eterna juventude.
Capítulo 9 de ‘Sete’, por Eduardo J.
Capítulo 9 de ‘Sete’, por Eduardo J. (2009)
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