O sonho não variava. Era o mesmo, noite após noite. O rapaz começava por ver-se, na pequena poça de água salgada daquela rocha em que estava sentado em paz. Via os seus olhos, azuis como o mar, e a sua pele, que se apresentava clara perante o Sol radiante daquela manhã. Via um sorriso começar a esboçar-se, quando ouvia atrás de si os passos do costume. Aí, desviava o olhar da água e focava-se em quem vinha. Pele clara, cabelo castanho ondulado e uma expressão mais que bela. A serenidade que aquele rosto lhe transmitia cada vez que sonhava alimentava ainda mais a paz de espírito que a praia, o Sol suave e a brisa matinal lhe transmitiam. Mais uma vez estendeu-lhe a mão, mais uma vez a abraçou, mais uma vez a sentiu. Mais uma vez ela se sentou nele e juntos olharam, quietos, o mar pouco agitado daquela manhã. Mais uma vez ali ficaram, sem noção do tempo, ver o Sol reflectir-se no mar, sem falar, sem se olhar, mas compreendendo-se. Sentindo-se. Acompanhando-se mutuamente. Não sabia o rapaz de que é que mais gostava naquele sonho: se a serenidade que no mundo lhe era alheia e lhe fugia, se aquele ser, belo e calmo, que lhe fazia companhia e iluminava o sono. Fosse o que fosse, amava ambos. Inspirava bem fundo para sentir o seu peito encher-se ainda mais; peito o dele que, com um peso agradável e forte, intenso e profundo, estava já preenchido. Inspirava para senti-lo mais, e para senti-la mais. A cada noite queria mais e mais daquele sonho, mas não do que vinha a seguir.
Como sempre, sentiu uma agitação. Um arrepio de quem o acompanhava. Ela virava-se, ainda sentada, e beijava-o na bochecha, que entretanto rosava. Dava-lhe mão, e punha-se a pé, exibindo as suas pernas delicadas em que o vestido, branco e fino, ia esvoaçando ao ritmo lento da brisa. O rapaz, sentado, olhava-a com o pesar de quem sabe o que se passa a seguir. Depois do beijo, depois de se levantar, ela largava-lhe a mão, suavemente, e olhava-o como quem tem pena. Olhava-o por instantes, virava-se e começava a andar. Nem um palavra. Caminhava à beira mar, afastando-se mais e mais do rapaz, com a serenidade que marcava todo o sonho. O rapaz olhava-a do fundo azul dos seus olhos, desejando-a sem a poder ter. Era um sonho, ele sabia… e nem levantar-se ele conseguia. Via cada passo, amava cada onda que chegava aos pés daquela moça de quem nem o nome conhecia. Sempre, noite após noite, a mesma coisa: a felicidade fugindo-lhe como água entre os dedos. Não desejava acordar. Preferia ficar e ver. Vê-la andar, marcando cada passo na areia da praia. Ver o vestido e o cabelo a mover-se à vontade do vento, sentindo aquela rocha e ouvindo o mesmo mar que ela. Era um mundo que teria que deixar.
Com um arrepio na espinha, sentiu-se despertar. Não abriu logo os olhos. Sentia aquela estranha sensação de quem não sabe onde está a acordar. Sentiu o Sol na cara. Sentiu uma rocha. Abriu os olhos e reconheceu a praia. Ficou logo desperto… Não se lembrava de como ali tinha chegado… Ainda um pouco atordoado, começou a ter flashes da noite anterior. Rapidamente a excitação se desvaneceu. Olhou o fundo da rocha, e lá viu a garrafa que, juntamente com outras, o teria feito ir ali ter, inconscientemente. Afinal de contas, não se tratava de um milagre da Natureza. Estava ali por uma razão, mas não a que desejava. Voltou a deitar-se, aborrecido. Voltou a sentir o frio da rocha nas costas, sentindo o prazer de quem acredita merecer um castigo. Passado um par mais de horas dormindo ao relento, acordou mais sereno. Estava na hora de voltar a casa. Olhou a poça de água que já tão-bem conhecia para ver em que estado estava. Viu o seu ar despreocupado e despenteado, mas viu também o brilho que costumava ver nos seus olhos. Fechou os olhos devagar e ouviu passos sussurrados. Um sorriso monumental nasceu-lhe no rosto. Não precisava de olhar, já reconhecia estes passos. Não se sentiu nem desorientado, nem aflito. Sabia exactamente o que fazer… Solenemente ergueu a cabeça, compôs a postura, e preparou-se para sonhar acordado.
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