Feliciana Rossas (Geração 1969)
As lágrimas de desespero ainda secavam nas faces rosadas e quentes de Feliciana quando ele a agarrou. Mais uma vez pedira a Tinoco Fanecas que despedisse a sua filha daquela imunda casa de meninas, e mais uma vez lhe havia sido recusado o pedido. «Carla é demasiado importante para o negócio», dissera. Foi virada de costas sem cuidado, e antes mesmo de se recompor ou acabar de falar, era já penetrada por Tinoco como uma cadela vadia.
Forçou uma cara zangada que Tinoco não viu até se vir, momento em que a virou para a beijar. Terminado que estava o habitual teste de qualidade de Tinoco, levantou-se e lançou-lhe um olhar desagradado. «Espero ter passado no teste… cão». Saiu do quarto, chateada, e desceu do andar de Tinoco para os andares inferiores, do bordel propriamente dito, para iniciar uma nova noite de trabalho. Tratou os clientes da melhor forma que conseguiu, mas foi mais felina e agressiva que numa noite habitual. Curiosamente, os clientes não ficaram desagradados com a ferocidade. Chegou ao fim da noite exausta, mas já menos irritada. Voltou a subir à casa de Tinoco pelas escadas exteriores, e tocou à campainha. Como de costume, veio abrir a porta nu. «Já com saudades minhas?», perguntou. Espantada com tamanho narcisismo, Feliciana franziu o sobrolho e virou costas. Mas quem pensa este homem que é? Descia já as escadas que acabara de subir quando sentiu o braço agarrado. Tinoco puxou-a para dentro de casa, e, desta vez ternamente, beijou-a. Com tamanha doçura, a fúria dissolveu-se em Feliciana, e o seu coração selvagem derreteu como manteiga. Oh… meu… Deus! Estarei a apaixonar-me por este animal? Chocou-se a si mesma mas, sem saber como, não resistiu a abraçá-lo com ternura.
Desiludida com a própria fraqueza, deixou que novas lágrimas lhe escapassem dos olhos. «Porque é que ela entrou neste submundo? Porquê, Tinoco?». Falou sem o largar, aconchegada nos seus fortes braços. «Sabes bem… Melhor que eu! Liberdade. Independência. Orgulho… Tu mesma enveredaste pelo mesmo caminho!». «É diferente… Muito diferente, Tinoco! Eu sentia-me cada vez mais velha; cada vez menos desejada… Eu nasci pobre. Fiquei sem mãe aos 2 anos, e oxalá tivesse ficado sem pai também. Nunca me trouxe nada de bom; bem pelo contrário… Tinha 15 anos quando fugi de casa para nunca mais voltar. Desde aí me sustento com o que o meu corpo arranja. Sempre fui bonita… Nunca hesitei em usar essa beleza para subir na vida. Sempre fui cobiçada, despertadora de paixões, arrebatadora a cada passo que dava. Destrocei muitos corações pelo caminho, e a única coisa que amei verdadeiramente foi a minha filha, Carla. Para além de Carla, só a minha aparência me dava motivos de orgulho. Quando senti que o interesse em mim se desvanecia, comecei a fazer operações para ter no corpo a juventude que sentia ter na alma. Sempre fui fazendo pequenas coisas para me sentir mais jovem. Contudo, nunca me senti desejada. Nem pelo meu próprio marido… Por isso decidi deixá-lo, e por isso decidi vir para um sítio onde fosse desejada noite após noite após noite. Nada disto pode aplicar-se à Carla, linda e fresca, na flor da juventude.» Baixou o olhar, triste e perdida. Quando o voltou a erguer, viu como Tinoco a observava, com um olhar profundo.
Sem mais falar, agarrou-lhe na mão e conduziu-a pelas escadas abaixo. Desceu do segundo andar para o primeiro, e do primeiro para o rés-do-chão. A surpresa surgiu quando tirou do bolso uma pequena chave que abria uma porta que Feliciana nunca antes ultrapassara. Foi então que do rés-do-chão desceram até à cave.
Feliciana não escondeu o espanto, Tinoco não escondeu o orgulho. Mais que uma cave de chulo, via ali uma cave de génio. Um gigantesco laboratório fervilhava mesmo por baixo do sítio onde se vendia todos os dias. Tubos de ensaio, quadros e pó de giz cobriam paredes e bancadas, e quase tudo o resto naquele sítio parecia vir direitinho do futuro. Olhou Tinoco, ainda mais apaixonada que alguns momentos antes. Quando pensou que não podia apaixonar-se mais por aquele misterioso homem, Tinoco revelou o que ali estudava: «O Elixir da Juventude. A Imortalidade. É isso que procuro nestas máquinas, nestes tubos, nesta confusão…». Feliciana nunca antes se sentira tão excitada!
E assim se tornou… na primeira cobaia de Tinoco.
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